Um par de sapatos, Van Gogh
Paris, segunda metade de 1886
Óleo sobre tela, 37,7 x 45 cm
Paris, segunda metade de 1886
Óleo sobre tela, 37,7 x 45 cm
«Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a humidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o calado tremor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte.»
Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Edições 70, p. 25
Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Edições 70, p. 25
2 comentários:
Não tendo a argúcia e a estrutura teórica de Heidegger, ainda assim atrevo-me a tecer algumas considerações sobre a imagem. Confesso que o objecto me transporta para uma dimensão histórica complexa e sem os referentes apresentados pelo filósofo. Estas botas lembram-me múltiplas errâncias, e um tempo já longínquo e que tenho apenas de memória cinematográfica, protagonizado pela saudosa figura de Charlot. Lembra-me também a leitura de Dickens, as figuras de "Oliver Twist" e a sua miséria fabril...
Diz o ditado que os sapatos dizem muito da pessoa que os calça. Não sei se agricultor, mas com toda a certeza, não terá sido um feroz consumidor à espera das generosas, ou talvez nem tanto, promoções pós-natalícias. Dizem-me que é alguém que calcorreia o chão e não se defende da humidade e do frio, da neve, ou da lama, tão comum em tempos pré-alcatrão. Se assim fosse, seriam finos botins de cetim ou veludo, ou mesmo verniz, como as heroínas de Dumas, de Camilo ou Eça. Estas botas palmilharam muito. Aqui chegam para nos deter o olhar e pensar na simplicidade de outros tempos, em que um simples par de botas fazia a felicidade e o conforto de uma pobre alma.
Bem diz o ditado que uma imagem vale mais do que mil palavras...
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